Que tal olhar para o quanto você progrediu?
Agora você já tem uma experiência de, por baixo, 120 casos clínicos.
Cento e vinte?
Provavelmente mais. Olha só. Considerando que o mês tivesse apenas 4 semanas e que a cada semana você tenha feito três visitas a três enfermarias diferentes. E que em cada visita você tenha examinado dois pacientes.
De março a dezembro são nove meses, joguemos um fora, então 8 meses.
Façamos a conta: 8 meses x 4 semanas x 3 visitas x 2 pacientes = 192 casos clínicos diferentes.
Mas levando em conta a possibilidade da sua timidez inicial, as faltas em consequência de ter que estudar para prova, a sua falta de prática inicial lendo rápido demais o prontuário sem dar a devida atenção a anamnese, com medo de não dar tempo de examinar o paciente, algum desentendimento na enfermaria, etc, por causa dessas e de outras possibilidades, eu considerei apenas cinco meses. Daí, por baixo, você ter uma experiência muito boa de 120 casos clínicos.
E esses casos clínicos estão distribuídos pelas diferentes enfermarias que você visitou, pois eu lhe orientei que quando você tivesse estudado o aparelho respiratório, você fosse a enfermaria de pneumologia, lê-se…, quando você tivesse tido a aula de aparelho cardiovascular, você fosse a enfermaria de cardiologia, lê-se…, e assim sucessivamente na enfermaria de gastro, de hematologia, de…
Logo você tem uma experiência riquíssima, embora você ainda não dê o devido valor a ela, pois você viu casos clínicos de diferentes enfermarias.
E por que isso é importante?
Isso é importante por vários aspéctos entre eles:
Cada especialista avalia melhor a sua especialidade, logo um pneumologista provavelmente vai examinar muito bem o aparelho respiratório e não tão bem quanto um cardiologista o aparelho cardiovascular, nem tão bem quanto um gastro o aparelho gastrointestinal e assim sucessivamente: hematologia, neurologia, etc.
Logo, quando você chega na enfermaria de gastroenterologia e lê a anamnese e o exame físico, você está tendo acesso a uma melhor qualidade do exame desse aparelho gastrointestinal. E outra coisa importante aqui é que você vai começar a dar valor àquelas perguntinhas “chatas” que você tem que estudar para aprender a fazer, pois na gastro o diagnóstico muitas vezes é praticamente feito pelas perguntas e não pelo exame clínico.
Enquanto na cardiologia existe uma riqueza de sinais clínicos que você iniciante vai adorar examinar (sopros sistólicos, sopros diástolicos, pulso martelo dágua,… sopro +++, sopro+, edema de membros inferiores + ou ++ ou… fígado palpável…, pulmões encharcados,…) na gastroenterologia as perguntas da anamnese vão lhe dá a suspeita do diagnóstico que muitas vezes só poderão ser comprovados por exames mais sofisticados.
Um paciente com uma úlcera gástrica não vai ter um sinal clínico que voce poderia ver a inspeção, ou palpar ou percutir ou auscultar. A não ser que haja uma complicação dessa úlcera.
Assim, na gastro você realmente começará a dar valor a anamnese.
Outro ponto importantíssimo de visitar as diferentes enfermarias é que sem perceber você irá aprendendo a direcionar o exame clínico de acordo com a anamnese.
Você já considerou que na correria diária do médico sobrecarregado não dá tempo de você percorrer todos os aparelhos examinando baço, fígado, olhos,… Isso levaria uma hora e meia em cada paciente. Cansativo para o paciente que está sendo examinado, para você e para os que estão aguardando o atendimento.
Então, a anamnese (aquelas perguntinhas “chatas” que muitos não dão o devido valor) direcionam o seu exame clínico para os aparelhos mais importantes para aquele caso clínico.
Cada queixa que leva o paciente ao médico leva o médico a pensar em uma ou algumas possibilidades as quais o levarão a pesquisar no exame clínico e a checar dentre as suas possibilidades a mais provàvel para poder pedir os exames laboratoriais e/ou de imagens necessários.
Para que você entenda claramente o que estou a dizer, vou dar um exemplo radical que só aconteceria em programas de trapalhadas.
Um paciente chega a você e diz que está com uma dor no olho, que o olho ficou vermelho desde ontem… Aí você começa a examinar o pé desse paciente, depois olha as pernas, o abdome, começa inspecionar o fígado, palpa, percute, vai para o baço e perde mais um tempão examinando este órgão. Não satisfeito examina os intestinos, fica procurando por líquido na cavidade abdominal… já deu pra entender.
A queixa do paciente é um olho vermelho coçando e você sequer examinou o olho. Você desperdiçou um tempão examinando aparelhos que sequer foi sugerido na anamnese haver algum problema neles. E pior não examinou o olho do paciente que foi o que o levou a procurar o médico.
Para deixar ainda mais claro. Quando um paciente chega na enfermaria com queixa de falta de ar. “Doutor, eu acordo toda noite com falta de ar. Aí me sento e fico esperando melhorar.”
Essa queixa já leva o médico a pensar em Insuficiência cardíaca e ele vai examinar também o pulmão não porque o livro de semiologia ensinou a examinar o aparelho respiratório, mas porque ele estudou Insufiência Cardíaca e sabe que o coração não bombeando adequadamente o sangue, este vai se acumulando retrogradamente e causando edemas: edema de pulmão, edema de fígado, edema de membros inferiores. Por isso, na suspeita de Insuficiência Cardíaca ele vai examinar essas partes para confirmar tal suspeitas e assim poder pedir os exames necessários.
Cada queixa leva a suspeitas que por sua vez levam a exames semiológicos necessários para confirmar tal suspeita.
Começou a entender? Você visitando enfermarias diferentes, lendo a anamnese e o exame físico irá aprendendo sem perceber estes direcionamentos de exame físico que são feitos por cada especialista após as perguntas que fez, isto é, anamnese.
Chegando em uma enfermaria de gastro você provavelmente irá ver muitos prontuários assim. AR limpo; ACV limpo; etc. Isto quer dizer que tanto o aparelho respiratório quanto o aparelho cardiovascular não apresentam qualquer problema.
Assim você sem o perceber vai começando a ver que de acordo com a queixa do paciente diferentes aparelhos são atingidos ou não são atingidos.
Eu garanto a você que se eu chegar agora pra você e disser: doutor, eu estou com uma falta de ar, uma canseira só.
Você já vai querer saber: quando acontece essa falta de ar?
Pois se for de noite, acordando depois de dormir pode ser Insuficiência cardíaca como visto acima.
Mas se for uma canseira, não consigo andar, fazer as coisas que fazia. Pode ser muitas outras coisas, até uma “simples” anemia.
Agora, aquele seu colega que virou noites em um plantão e que se prejudicou nas provas, embora ache que está mais adiantado que você, ele não terá alcançado a riqueza de conhecimentos que você alcançou e ainda nem percebe que alcançou.
Na próxima postagem começaremos a ver o que fazer no quarto ano de medicina.