terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

19 Você é ou você apenas está?

Filho, existe aqueles que são e aqueles que apenas estão.
Você precisa entender que você é um dos que são, por isso você precisa ter mais calma, controlar essa sua ânsia por aprender rápido, pois em cada erro que você comete, morre um pouco do médico que você é.

Já para aqueles que apenas estão, cada erro é uma experiência a mais.
Filho, você não é como estes, tenha calma, controle essa sua ânsia de aprender, pois professores não há. E não havendo professores a estrada do aprender se apresenta toda esburacada, de modo que se você acelerar seu carro fatalmente capotará.
O filho olhava para o pai sem entender. Que papo mais chato, tenha paciência.
Filho, ah! se eu pudesse voltar no tempo. Eu fazia um curso de teatro.
Teatro? Tenha dó. (o velho enlouqueceu, tá caducando.)
É, teatro sim. Assim, quando eu fosse fazer uma entrevista para um emprego ou uma prova oral, eu analisaria bem a pessoa a minha frente.
Se fosse uma carroceria eu agiria como carroceria, se fosse um motor, agia como motor.
E essa agora. O velho com esse papo de carro. Motor, carroceria, estrada cheia de buracos… dá um tempo velho! Eu vou me formar em medicina, não vou ser piloto de fórmula 1.
Meu filho, o que faz o carro andar é o motor.
Sem motor o carro não anda. Mas tem gente que quando vai comprar um carro olha para os acessórios do carro, para a carroceria.
Vê os espelhinhos, o acolchoamento do banco, o rádio, o… assim também é o examinador, uns poucos procuram por um motor, mas muitos escolhem carrocerias. Por isso que o país está uma droga.
E essa agora. Tá com ideia de se candidatar na próxima eleição?
O pai, suspirou desanimado. Como faria o filho entender o que ele tentava lhe passar?
Ah! Se pudesse voltar no tempo…
Não ficaria mais desesperado, estudando pra passar direto naquelas maratonas de provas cujo intervalo nunca era maior que 2 dias.
Simplesmente escolheria umas duas pra fazer com intervalo igual ou superior a quatro dias.
As outras faria segunda chamada. E se fosse pra prova final, paciência. Aquela gente nunca o olhou realmente. Pareciam ver outra pessoa.
Lembrou-se do dia em que irradiava alegria, à véspera da formatura, quando avistou o Joel em Niterói. Lembrou-se então do tempo em que viveu fora do Rio, numa república. Do sentimento de solidão que muitas vezes o invadia nos finais de semana. E pensou que o Joel, por ser de Minas Gerais, talvez passasse pela mesma provação e assim ofereceu a ele um convite para a sua festa de formatura.
Pareceu ter feito ao Joel a maior ofensa do mundo: “não vou pra sua festa não!”
Pensou que por o Joel ser de outro estado, quisesse ter um lugar onde pudesse comemorar com seus pais a sua própria formatura. Era isso que ia lhe explicar, mas o Joel lhe deu as costas e saiu apressado como se estivesse fugindo de um crápula, de alguém com uma doença contagiosíssima.
As pessoas muitas vezes destroem os outros pelo que elas veem no outro sem sequer tentar descobrir se o que elas estão vendo é realmente verdade.
Até aquele dia pensava que o Joel, a quem respeitava e admirava, era seu amigo.
Viam outra pessoa! Se voltasse no tempo, desistiria do seu sonho impossível de fazer esterelidade. Não lhe dariam a oportunidade mesmo. As portas estavam mesmo fechadas.
Em vez disso, faria o seu plantãozinho de sábado na maternidade e depois faria uma residência em obstetrícia, junto com o plantãozinho.
Quando terminasse a residência de obstetrícia continuaria no seu plantãozinho de sábado e faria outra residência para cirurgia geral.
Só que não ia ficar que nem louco, competindo pra fazer as cirurgias. Não! Nada disso! Ia querer mesmo era auxiliar. Ver os outros fazerem. Como eles saiam das enrascadas cirúrgicas.
Só se interessaria por fazer as cirurgias abdominais que pudessem lhe ajudar  na prática obstétrica.
Daria também prioridade ao que ninguém dá: visitar as enfermarias pós-operatórias para ver como se faz os tratamentos das complicações pós-cirurgias. Tentando sempre saber as causas, para poder evitá-las, quando operasse.
É, se pudesse voltar no tempo faria assim. Talvez com um intervalo de um ano entre uma residência e outra para poder estudar a teoria da cirurgia geral.
E o mais importante, nunca abandonaria o seu plantãozinho de obstetrícia, mesmo durante a residência de cirurgia geral.
E caso não pudesse conciliar, abandonaria a residência de cirurgia geral e iria procurar uma pós graduação de cirurgia geral onde pudesse conciliar com o plantão de obstetrícia.
Quando a gente deixa a prática obstétrica, o ouvido perde a capacidade de auscultar, as mãos de palpar, …
Mas como explicar para o filho que talvez ele não encontrasse professores em seu caminho, de modo que os conhecimentos “ensinados” ficariam sempre com muitas lacunas (muitos buracos).
Que se ele não estudar a teoria, por si mesmo, corre o risco de quebrar a suspensão do carro, bater e até capotar.
Mas o filho não conseguia entender que ele não era como muitos que apenas estão e que, quando erram, seguem em frente como se nada tivesse acontecido: “apenas mais um aprendizado”.
Para o filho, cada erro seria um peso  que torna a caminhada mais penosa.
Como fazê-lo entender que teria que diminuir a velocidade do carro?
NÃO EXISTE MÉDICO SEM SOLIDARIEDADE HUMANA.