domingo, 17 de junho de 2012

Desde o início, eu deixei bem claro

para a Anne que eu não a estava escondendo do mundo e sim, a tecnologia que a trouxe para o presente. Fiz ela entender que muitas pessoas gostariam de saber que ela havia escapado da morte, mas ao saberem disso descobririam a tecnologia temporal e aí…

Por que você só salvou a Anne? E as pessoas que você deixou lá pra morrer? Você é cúmplice da morte delas. ASSASSINO!

Passeatas espalhadas pelo mundo exigiriam que a tecnologia fosse entregue para que militares voltassem lá e os salvassem dos campos de concentração.

Essas pessoas, participantes de tais passeatas, não conseguem entender que provavelmente existe uma tecnologia temporal mais desenvolvida, muito a frente do nosso tempo, em poder de uma sociedade que talvez não deseje essas interferências que eles exigiriam. E esta sociedade mais poderosa tecnologicamente simplesmente voltaria e impediria tais mudanças, de modo que eu não inventaria tal tecnologia e consequentemente não conseguiria salvar a Anne. E nós sequer saberíamos de tal interferência. Mas os que me chamariam de assassino em tais passeatas não conseguem enxergar isso e sequer entendem que, por esse ângulo, eles é que são os assassinos, pois me impediriam de salvar  a Anne e provavelmente muitos outros pela ação temporal que a Anne faria.

Quando estava próximo de eu passar a tecnologia temporal para ela, eu perguntei: Anne, você nunca se perguntou por que eu não trouxe a sua irmã e a sua mãe junto com você?

Por causa da dificuldade e…

Não Anne, não foi por isso não.

É muito difícil se adaptar a outra época, outros costumes, outros modos de ser e agir. Eu percebi que você conseguiria isso, pois você me pareceu um pouco à frente do seu tempo. Sua irmã eu não sei se conseguiria.

Seria muito mais difícil, mais eu poderia ter tentado salvar também a sua irmã junto com você, mas além de não acreditar que ela conseguiria se adaptar as mudanças de comportamento da nossa época, eu também não sabia como motivá-la para querer viver depois de saber da morte das pessoas que ela amava. Por isso preferi salvar só você e dar a você um motivo forte para querer viver: salvar sua irmã e sua mãe.

Entendi também que por você ter estado lá dentro, seria muito mais fácil para você salvá-la, enquanto eu correria o risco de morrer tentando e consequentemente não conseguiria salvar você.

Outro ponto primordial é que você, conhecendo a sua irmã e já tendo passado pelo processo de adaptação ao tempo presente, provavelmente conseguirá dar a ela o motivo para ela querer continuar viva.

As pessoas acham que é só trazer alguém e pronto.

Uma coisa que você vai ter que se perguntar é: será que salvar a sua mãe é realmente salvá-la ou colocá-la em um inferno em vida? A dor de se ver sozinha em um tempo com costumes e maneiras completamente diferentes, sabendo que seu pai constituiu uma nova família,… será que salvá-la é realmente salvá-la.

Não seria melhor acreditar no processo evolutivo e trabalhar para que o futuro a salve? Escolhendo com sabedoria o próximo beija-flor e preparando-o para fazer o mesmo, esperando assim que o futuro traga novas soluções.

Você precisa aceitar as suas limitações. Nós somos apenas beija-flores pegando com o bico gotinhas de água para apagar o incêndio da floresta. Mas no futuro, em algum momento do processo evolutivo, alcançaremos um estágio além. E esses que lá estiverem provavelmente poderão fazer algo mais que agora não está ao nosso alcance fazer.

A Anne ficou me olhando e seus olhos se encheram de lágrimas.

Olha Anne, existe outras formas de você conseguir aumentar o número de sobreviventes ao Holocausto: levando alimentos e fazendo-o chegar aos judeus. Atrasando a ordem que os oficiais receberam para matar. Mesmo que você só consiga atrasar em um dia tal ordem, quantos não se salvariam? E fazendo isso parecer acidental você não atrairia a atenção de alguém lá na frente que poderia querer vir para impedir você de agir.

Trazê-los para o presente como gritariam nas passeatas não é a solução. Peguei a bíblia e mostrei os judeus reclamando com Moisés por tê-los tirado do Egito para morrer no deserto.

Olha Anne, eles eram escravos, sofriam mal tratos diversos, mas estando livres e passando por dificuldades se esqueceram dos sofrimentos e começaram a mal dizer Moisés. Por que seria diferente com você?

Trazê-los para o presente não é a solução e aumenta muito o risco de que alguém mais poderoso lá na frente e com ideias contrárias a nossa possa perceber o que você está fazendo e consequentemente impedir a sua ação.

Será que quem mandou matar Isaac era realmente Deus? Será que o anjo que apareceu para impedir a morte não foi alguém à frente do nosso tempo herdeiro de sua ação?

Eu sempre achei que era simplesmente uma forma de educar a humanidade, de dizer para não matar outro ser humano em sacrifício, uma maneira de substituir os sacrifícios humanos que algumas sociedades do passado faziam por sacrifícios de animais, mas você tem de atentar para essa possibilidade: matar Isaac poderia ser uma tentativa de destruir tudo o que vem depois. Será que matar Isaac não seria uma forma de conseguir fazer o que o holocausto nazista não conseguiu fazer?

E o anjo salvador talvez só tenha sido possível em consequência de nossas escolhas, pequenos beija-flores.

Anne, você já parou pra pensar que  talvez você tenha salvo sua irmã antes de eu salvar você?

(fiz uma pausa para deixá-la pensar e depois continuei)

Será que é tão simples como eu fiz parecer: você volta lá, atrasa a ordem e salva muitos?

Qual a consequência desta ação no presente?

Seriam outras pessoas a interagir com o mundo, a competirem entre si e em consequência dessas novas interações entre as pessoas ao voltar para o presente, você poderia descobrir tardiamente para você que as minhas escolhas foram outras, que eu não inventei a máquina do tempo, que não voltei lá para pegar você e aí: será que você continuaria a existir ou morreria lá abandonada?

Como saber onde e quando agir? Isso, provavelmente caberá a você e aos futuros beija-flores descobrirem, pois uma ação equivocada de um beija-flor pode destruir a existência de todos os beija-flores.

EGOÍSTA gritam os que gritariam nas passeatas ASSASSINO. Mas será que esses participariam das passeatas se soubessem antecipadamente das mudanças que ocorreriam em suas vidas, se fizéssemos o que eles gritaram exigindo? Se no presente já reclamam dos imigrantes que “lhes tiram o emprego”.

Será mesmo que sou eu o egoísta?

Será que eu não sou apenas uma pessoa responsável que tento pesar antecipadamente as consequências das minhas ações?

A ação inconsequente de um beija-flor pode  levar a morte de outros beija-flores e até causar a nossa extinção. Pense nisso antes de agir, Anne. Depois dessa frase lhe entreguei a máquina do tempo.