sábado, 19 de fevereiro de 2011

23 Médico ou Vendedor de Serviços Médicos

As pessoas nos levam a acreditar que ser médico é aprender a executar procedimentos médicos. E a sociedade acredita nisso como uma verdade absoluta.
E essa “verdade” é implantada no nosso inconsciente, de modo que muitos colegas já começam a se sentir médicos, quando aprendem a medir a pressão arterial.
E saem por aí, medindo a PA de todo mundo, pois o executar deste procedimento os faz se sentir médicos.
Acreditamos inconscientemente que ser médico é aprender a: medir PA, aplicar injeção, fazer suturas, colocar cateteres venosos, nasogástricos, vesicais, …
As pessoas acreditam que basta medir a PA e estando ela dentro dos valores ditos normais para estar tudo bem. Mas isto nem sempre é verdadeiro. E é aqui que você começa a entender a diferença entre um Médico e um vendedor de serviços médicos.
Onde o vendedor dirá que está tudo bem, pois os valores estão dentro da normalidade, o Médico, raciocinando clinicamente, avaliando o quadro clínico daquele paciente, poderá entender que aquela diminuição da PA em um paciente que tem pressão alta está avisando sobre um agravamento da condição clínica.
Assim, não basta medir a PA e ver se está dentro dos valores normais como a maioria dos leigos acreditam. É preciso ter a capacidade de raciocinar clinicamente e para isto é necessário muito estudo.
Imagine que você pediu um exame de sangue de uma criança e ele veio anormal.
Você olha para aquela criança e ela está bem. Você, na anamnese, perguntou sobre a história daquela patologia na família do pai e da mãe e recebeu a resposta de inexistência.
O vendedor começaria a tratar imediatamente, a passar uma dieta.
Mas você, um Médico, raciocinaria e se perguntaria: será que ela, sendo criança, não se alimentou escondido antes de colher o sangue? Será que ouve troca de exame?…
Sendo ela uma criança, você provavelmente pediria novo exame para confirmar ou outro exame para descartar o que o quadro clínico e a história familiar dela já estão descartando.
Mas o leigo, o vendedor, acha que basta somar 1+1 para achar dois. Medicina não é assim. 
Para ser um Médico é necessário que você aprenda a raciocinar, pois é o raciocinar que faz você ser um Médico.
Na residência, a enfermeira me chamou para ver uma mulher no pós-operatório que se queixava de dor de cabeça. Fato até então nunca visto por mim, nem nunca mencionado por ninguém a mim.
Perguntei a dois médicos que chegavam no plantão e eles continuaram conversando como se eu nem estivesse ali. Lembre-se que eu estava cursando uma residência onde deveria ser passado a mim os conhecimentos. Eu não era o plantonista, eu era o médico aprendiz.
Lembrei de um pequeno parágrafo de umas quatro linhas que estava “perdido” no tratado de (se eu não me engano) fisiologia (Guyton).
Lá dizia que às vezes, quando se faz raquianestesia,  o líquor pode ficar pingando pelo orifício onde a agulha perfurou, de modo que diminuindo a quantidade do líquor, o cérebro pela força da gravidade abaixa e o contato com o osso leva a dor de cabeça. Então o que fiz (se ainda me lembro corretamente – faz tanto tempo) foi abaixar a cabeceira da cama para retirar a ação da gravidade. (Lembre-se que este blog não tem a finalidade de ensinar medicina a você – que você deve ler nos livros médicos ou perguntar aos seus professores o porquê. Eu aqui não voltei aos livros para dizer a você o porquê da dor acontecer, porque eu não estou ensinando medicina pra você. Assim não use este conhecimento para responder questão de prova – vá ao livro ou pergunte ao seu professor o porquê)
Aqui, eu quero deixar bem claro pra você que no modelo atual da educação, o “professor” joga as informações e é você quem tem de juntar as peças do quebra cabeça e transformar as informações dispersas em conhecimento. Isto quando não tem de procurar por você mesmo as informações nos livros, revistas médicas, pesquisas,…
Por exemplo, você sabia que a geometria pode aumentar as chances de um goleiro defender um pênalti (veja abaixo) ou que se o Sócrates se lembrasse da física do segundo grau, ele não teria batido o pênalti contra a França da forma como ele bateu?
Naquele dia, na residência, eu comecei a perceber como era grande o nosso desamparo: uma mulher, recém operada, pediu para ir ao banheiro. Eu perguntei se ela estava se sentindo bem, se queria ajuda e ela disse que não.
Me lembrei da importância da pessoa andar para movimentar o sangue e evitar a trombose e assim disse que ela podia ir. Me ofereci para ajudá-la, mas ela disse que não precisava.
Logo depois chegou uma colega residente que era responsável pelo leito dela e começou a gritar comigo me repreendendo. Eu fiquei pensando: ela não sabe sobre o risco de trombose, prevenção de tromboembolia?
E depois fiquei na dúvida, será que a minha conduta era correta?
Em outro caso, uma incisão de cesariana feita conforme a técnica do livro, ao final da cirurgia ficou torta. O que aconteceu? Se a incisão foi feita no lugar certo e da forma certa, como poderia ficar torta?
DICA: se a pessoa que está lhe ensinando a operar colocar as duas mãos na pele da paciente indicando a você onde deve fazer a incisão, peça primeiro, educadamente, que ela retire as duas mãos da pele da paciente e só depois coloque os seus dois dedos demarcando onde deve fazer a incisão e faça. Por que isto? Como a pessoa está do lado oposto ao seu, ela ao colocar as mãos com o intuito de lhe ajudar pode acabar repuxando a pele para o lado dela (oposto ao seu). Assim, a incisão que você fez corretamente, poderá ficar torta. Se você estiver ensinando alguém, mostre primeiro como fazer depois retire as suas duas mãos do campo cirúrgico e deixe o colega fazer sozinho, sem ajudá-lo, para não repuxar a pele para o seu lado e entortar a incisão. Não use este conhecimento para prejudicar o colega menos experiente, lembre-se que você é um Médico.

Aprender a avaliar os sinais no pós operatório para diagnosticar uma hemorragia de um vaso babando que não tenha sido visto durante o ato operatório ou que não tenha sido tamponado adequadamente. Ninguém fazia e ninguém sequer mencionou ser importante.
Examinar a puérpera no pós parto, avaliando a evolução normal e anormal, pra quê? Ninguém ensinou.
Havia uma aula teórica que aparentemente não tinha importância para os que gerenciavam a residência, pois inventaram que nós teríamos de dar plantão em outro hospital além do de 24h que já dávamos no hospital da residência e para dar este outro plantão, nós obrigatoriamente teríamos que perder a aula que era dado todos os dias na parte da manhã.
Outro erro de metodologia de ensino, que acho importante mencionar: a teoria ensinada não tinha relação com o caso que você estava atendendo. É como ficar discutindo o sexo dos anjos.
Uma vez comentei que tinha um feto que estava dando cambalhota (fiz um gracejo).  O médico responsável pela visita na enfermaria meneou a cabeça e continuou como se eu não tivesse falado nada – como a querer dizer: este aí não entende nada de obstetrícia. Você foi lá examinar a gestante e dizer o que estava acontecendo? Nem ele. Provavelmente era uma gestação gemelar dado ao tamanho menor da cabeça.
O que eu percebi é que não se dá valor aos pontos que são importantes na formação de um bom profissional de medicina. Para os Vendedores de Serviços Médicos o importante é praticar, praticar, praticar,... é aprender a técnica de operar (cesariana e curetagem) e pronto.
Aí você sai vendendo o seu serviço.
Daí a importância que eles deram a colocar um plantão extra em outra maternidade para a qual nós não havíamos passado. Sem se importar que ao fazerem isto retiravam de nós todo o tempo livre de estudar. Eu, como todo ser humano, preciso dormir para descansar o corpo e de um tempo livre de lazer, para descansar a mente.
Mas pelo que percebi, o importante era praticar. Era fazer o procedimento.
Quanto ao ensinar a raciocinar…
Quanto passar experiências importantes que não se encontram nos livros…
E não pense você que tal lugar não é assim, pois isto é cultural.
É uma conduta que está dispersa em toda a sociedade nas diferentes atividades.
Eu ouvi em um noticiário, alguém dizer que ia aprender a ser eletricista, vendo o outro trabalhar sem estudar.
A ausência do Professor que sabe o que é importante ensinar nos leva a esse quadro. O que nós temos são pessoas que ocupam tais lugares e que nos dizem para ler, ler, ler e se virar. Isto quando nos deixam ler, pois ao nos obrigar a fazer um plantão extra semanal em outra maternidade nos tiraram todo o tempo para ler.
O corpo não aguenta – nós somos seres humanos, não somos máquinas. Mesmo as máquinas precisam parar de funcionar diariamente, para aumentar o seu tempo de funcionamento.
Mas os vendedores só dão valor a praticar, pois ao aprender o procedimento já se sente aptos a sair vendendo seu serviço médico.
Espero ter conseguido mostrar a importância de selecionar bons Professores e colocá-los nos locais adequados para dar uma melhor formação ao médico aprendiz e assim melhorar a qualidade da saúde.
Espero que tenha ficado claro que professor para mim é alguém que está ao lado, passando conhecimentos e que é dele o papel de descobrir e de saber o que é importante ensinar. Não cabe a ele apenas passar a informação. Cabe a ele sim passar o conhecimento, pois se assim não o fizer, a maioria dos que estão aprendendo não alcançarão o conhecimento.
Cabe ao Professor juntar as peças do quebra-cabeça e dá-lo montado ao aluno, pois a quantidade de informação cresceu tanto que é impossível ao estudante fazer isto por si mesmo. E quando tiver condições de o fazer já terá feito muitas coisas erradas.
Eu fico ouvindo as pessoas falarem, sem pensar, que é errando que se aprende. Mas quando o médico erra, elas não falam isto. Falam? Esse é o ditado mais idiota que eu já ouvi.
Na figura abaixo, você pode percebe que se o goleiro pular seguindo a linha verde ele percorrerá uma distância menor do que a habitual seguindo a linha marrom.
geometria